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O autor adverte que o conteúdo dos textos a seguir pode ser de origem real, imaginária ou onírica. Logo, em se tratando de semelhanças com o cotidiano, os mesmos podem distorcê-lo em intensidade e veracidade dos fatos.

domingo, 30 de setembro de 2012

Portão C

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      Aquela voz aguda e pontual ecoava por todos os cantos do aeroporto. Crianças correndo por entre as filas de embarque, mulheres gritando júrias de abandono aos maridos e homens exaltados com a plena incapacidade das atendentes, nada parecia interferir na calma e placidez da criatura onipresente daquele aeroporto. Nem mesmo os avisos de voos sendo adiados e cancelados, a tempestade que se aproximava e os loucos que circularam pelas longas pistas demarcadas com tinta branca, nada alterava o tom de normalidade que perpetuava na sua oratória. A mulher que discursava nos alto-falantes devia estar com os olhos vendados e ouvidos tapados, pois a balbúrdia que se instalava era indiferente ao tom das suas palavras. Porém não a mim.
      Meu rosto manifestava-se numa sisudez com leves toques de desespero. A contração dos meus músculos faciais, inquietos e atordoados, era contínua e dolorosa. Eu afundava meus dentes em meus lábios já vermelhos, fincava as unhas nos rosados sabugos, cerrava os punhos desafiando o limite das minhas forças, tudo isso para aliviar a tensão que se apoiava sobre os meus ombros. Talvez a dor fosse a melhor forma de desviar os pensamentos devastadores que circulavam dentro da minha mente combalida. Talvez a dor que eu provocasse, nem que fosse por alguns minutos, afastasse a dor maior que me acometia naqueles instantes finais, tão temporários na sua essência e ao mesmo tempo tão eternos na sua vivência.
      E ainda penso naquela despedida. O portão C demarcava a fronteira entre duas vidas. Ele separava dois homens, duas histórias, dois futuros. E ainda requeria um público para assistir à toda a minha prostração. Maldito seja o portão C. Deslocou de seus recantos sossegados os amigos mais próximos e fez despertarem cedo os familiares mais estimados. E de todos os teus males, fez caírem lágrimas. Muitas lágrimas. Afligiu corações fracos, angustiou preocupações tolas, fez brotar um sentimento uno. A saudade ali, ainda tão irracional, parecia ser tão grande como seria um dia. Não, eu não caminhava rumo à guilhotina, nem estaria atravessando galáxias e muito menos passaria décadas longe de casa. Eram só alguns anos. Alguns poucos anos. Anos.
      Não chorei. Nesses momentos o seu otimismo atropela todas as tuas vias racionais e esse longo tempo que resido do outro lado do oceano não aparentava ser grande coisa. Erro meu foi achar que conseguiria guardar no fundo de um baú na minha cabeça todo o apego por aquela vida. Hoje, respiro ares de outro hemisfério, conto as horas adiantado e vejo pessoas conversando em dialetos estranhos a mim. Convivo com um outro mundo. Que é lindo, não nego. Mas não minto que, ao deitar-me, eu reflito. Na verdade, eu suplico, conto os dias que restam e choro sobre as fotos amassadas, somente pensando no dia do desembarque, no meu retorno ao portão C.

Caio Sereno.

2 comentários:

  1. me identifiquei bastante nesse texto.
    esta muito bom. parabéns !

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  2. "Chegar e partir são só dois lados da mesma viagem" Me lembrei muito dessa música, com o final do post principalmente dessa parte. Amei o jeito que você foi descrevendo e me encantei como retratou a frustração de não só ver quem você ama partir como ainda ter platéia. Amei o post, Cacaroto. Amei!

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