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O autor adverte que o conteúdo dos textos a seguir pode ser de origem real, imaginária ou onírica. Logo, em se tratando de semelhanças com o cotidiano, os mesmos podem distorcê-lo em intensidade e veracidade dos fatos.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Pacote

(texto extraído do livro Comédias Brasileiras de Verão)
                                                                    Luis Fernando Veríssimo

“     A primeira coisa que José viu em Aline foi o lábio inferior. Aproximou-se dela e puxou conversa atraído pelo lábio inferior. Era um lábio inferior carnudo e sensual. Protuberante e provocante. José se apaixonou pelo lábio inferior de Aline. Tanto que, pouco depois de vê-lo pela primeira vez, pediu o lábio inferior de Aline em casamento. Queria o lábio inferior de Aline só para ele. Durante a cerimônia de casamento, não despregou os olhos do lábio inferior de aline. Pensando no prazer e na felicidade que seria ter aquele lábio inferior ao seu lado pelo resto da vida. Mas todo lábio inferior é ele e sua circunstância.
         Para cima, Aline tinha um nariz afilado, olhos claros e bonitos, sobrancelhas bem desenhadas, cabelos castanhos. Além, claro, de um lábio superior, não tão cheio como o inferior. Para baixo, um queixo delicado, um pescoço muito curto, omoplatas não muito salientes, seios pequenos mas bem-proporcionados, umbigo côncavo, sexo coberto por pouco cabelo, mais escuro que o da cabeça, pernas bem torneadas, pés satisfatórios.
         Dos pés à cabeça, Aline complementava a contento seu lábio inferior. E o lábio inferior não mentia, descobriu José. Aline era mesmo quente e sensual como seu lábio inferior prometia.
         Mas o lábio inferior tinha um passado, tinha lembranças, preferências, implicâncias, manias, segredos e ressentimentos. José se impacientou, algo envolvendo a mãe e… fez “Sshh” e encostou um dedo nos lábios de Aline, pedindo para ela deixar o assunto para depois da lua de mel. Fez a mesma coisa quando Aline começou a dizer alguma coisa sobre a política econômica do governo. José não pensara naquilo. O lábio inferior tinha uma história, e complexidades – e opiniões!
         E tinha mais. Tinha um irmão, Ariosto, demitido do serviço público por conduta incoveniente e que não demorou em pedir ajuda a José para custear uma ação que movia contra o Estado.
         José chegou a proibir as visitar da sogra, para impedir aquele atentado ao seu patrimônio, mas a própria Aline pediu que ele reconsiderasse a decisão. Aline tinha um grande sentimento de culpa com relação à mãe, por alguma razão. Além de tudo, era um lábio inferior com culpa.
         E havia o pai de Aline, o seu Enésio. Depois de aposentado, ele descobrira uma nova religião, só de aposentados. Eram pessoas que viam vultos e mensagens na tela da televisão, quando as estações saíam do ar. Elas passavam a noite em claro, olhando aquele chuvisco na tela, e se reuniam regularmente para discutir o que tinham visto. O sonho do seu Enésio era visitar uma cidade na Califórnia, que era o centro da nova religião e de onde vinham os livros e os folhetos que ele comprava pelo correio com todo o dinheiro da aposentadoria, para desespero da mãe de Aline, que descarregava sua frustação em Aline, fazendo tremer seu lábio inferior.
         Um dia, José e Aline estavam na cama, José mordiscando o lábio inferior de Aline como fazia sempre antes do sexo, quando tocou o telefone e era seu Enésio, aflito, dizendo que vira na tela da TV que o mundo ia acabar e eles precisvam fugir. Para onde, ele não sabia. Aline ficou nervosa com o telefonema do pai e entrou numa depressão de semanas. Durante as quais, sem acesso ao lábio inferior de Aline e às suas promessas. José meditou muito sobre a vida.
         Concluiu que o problema do outro é que o outro é sempre um pacote. Não se pode ter do outro só o que nos apraz e esquecer o kit completo. Vejam eu, disse José, para nos explicar sua tristeza. Eu só queria um lábio inferior carnudo e acabei com um universo.”

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