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O autor adverte que o conteúdo dos textos a seguir pode ser de origem real, imaginária ou onírica. Logo, em se tratando de semelhanças com o cotidiano, os mesmos podem distorcê-lo em intensidade e veracidade dos fatos.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

O gato preto – Parte I

   gatopreto3

      O céu transparecia a solidão que se via nas estreitas ruas da pequena cidade de Vórsea. As poucas estrelas que perduravam acesas naquele alto painel sombrio não conseguiam abrilhantar as frias noites de fim de outono, tão monótonas e vazias. Ainda se via espalhado pelo chão o que havia sobrado do festival que ocupou a cidade durante seis dias. Calçadas quase que pintadas de serpentina, apitos perdidos no fundo dos bueiros, adereços quebrados que lotavam as lixeiras públicas e um cheiro azedo de vinho mofado empestiava o entorno por onde as alegorias há pouco haviam passado. Quem por ali mais cedo contemplou o puro magnetismo das formas majestosas dos carros gigantes, não reconhecia que transitava pelo mesmo lugar. De tão colorido e fascinante, agora as ruas de Vórsea repousavam na monocromia da escuridão, em pleno silêncio desértico. Todos pareciam estar hibernando em suas casas, fugindo dos perigos que a vida noturna poderia lhes trazer. Somente os ventos gelados e as lâmpadas de querosene é que ainda continuavam dando movimento àquela pacata cidade. Nem mais se viam os moradores de rua escondidos nos becos, os cães em bandos à procura de comida, os ébrios exaltados, ora tristes e ora alegres, nada. Se um dia já pensaram no cenário do fim de nossa espécie, aquela paisagem que eu observava da minha janela seria o mais fiel para retratá-lo.
      Não havia de ter homem no mundo que suportasse o que se passou comigo naquela noite.  Uma angústia torturante. Desesperado, belisquei a pele de meu braço esquerdo, arranquei tufos de cabelos ao puxá-los com força, tentei até gritar, porém não consegui retirar um mísero som que fosse das minhas cordas vocais. Indo em direção ao banheiro, tropecei em minhas próprias pernas e  fui-me arrastando pelo carpete. Ao chegar lá, apoiei-me na pia, e erguendo-me lentamente busquei o interruptor. De tão atordoado, demorei um pouco para achar o pequeno botão branco ao lado da toalha azul de algodão molhada. Pensei se aquele que fitava os meus olhos profundamente do outro lado do espelho seria a única face a qual veria pelo resto de meus dias. E talvez fosse.
      Saí. Retirei o grosso casaco de lã escondido há anos no fundo do armário e pus rapidamente a bota de couro de cano longo que havia comprado numa liquidação qualquer há uns dias atrás. Logo após virar a chave do portão, não tive a coragem imediata de mover os meus pés. Talvez eles tivessem me dando um aviso, fincando suas raízes no concreto como quem diz “Não se vá, aqui é o nosso lugar”. Não lhes dei ouvidos. Cautelosamente fui me apoderando daquele ambiente inóspito, passo a passo, respiração a respiração, olhar a olhar, tentando enxergar as coisas que pouco faziam proveito da luz ordinária e amarela que via do alto dos postes. Até a lua se escondia em si mesma, minguando no céu que cobria a cidade de Vórsea. “Que pena!”, sussurrei para mim mesmo, “Que pena ver tu, minha terra de berço, abandon…”
      Um barulho. Confesso não o ter distinguido na hora de onde ele veio. Pensei até que fosse coisa da minha cabeça, e não seria muito absurdo admitir esta hipótese naquele momento. O som voltou a se repetir, mas agora, atento, consegui identificar a sua direção. Do outro lado da rua, ao lado de um grande depósito de entulhos, encontrava-se um beco. Escuro como todos os outros nas noites de Vórsea, mas agora um fato peculiar não mais me afastava, mas me atraia para ele. Um barulho. Ao me aproximar para bem perto de sua entrada, nada consegui perceber em sua obscuridade. Nada. Por alguns instantes, senti-me um tolo na procura por algo sobrenatural naquele espaço negro, mas mesmo assim me mantive ali, com os olhos irrequietos, procurando qualquer resquício de vida. E algo se mexeu. Rapidamente enxerguei naquele mar de sombras um vulto qualquer. Ainda que silencioso, o ser desconhecido vagava de um lado para outro e tuas idas e vindas iam cada vez ficando mais intensas e eu o sentia cada vez mais perto de mim. Quando eu já estava prestes a dar um passo para trás visando me afastar dali, eis que ele abre os olhos. Luzidios e incisivos, eram grandes bolas prateadas no meio da escuridão. E seu andar continuava constante. Uma aflição tomou conta de mim na ansiedade de ver que face ele teria em contato com a luz.  Eu já podia enxergar o seu pelo preto e reluzente, os seus largos bigodes e seu rabo longo e dançante. Eu já podia ouvir o seu ronronar suave. Eu já podia ouvir tudo. E ouvi. O gato preto enfim repousou próximo de meus pés, e como se já me conhecesse por uma vida inteira olhou para mim e miou. De alguma forma, passei a ter certeza da beleza de meu destino. E entendi que, após ter cruzado com o gato preto, eu seria o homem mais feliz do mundo.

Caio Sereno.

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