
A aurora recém-chegada já dava outros tons à sobriedade constante da pequena cidade de Vórsea. O horizonte pouco a pouco era rasgado pelos impiedosos raios solares, que invadiam as casas, e na ausência de uma sutileza intrínseca, despertavam todos os habitantes adormecidos. O canto dos pássaros ganhava amplitudes dignas de uma ópera e cruzava os cômodos ocos, abafando até o som compassado dos automóveis e das carroças. Já se ouvia os risos das crianças brincando de pique-esconde, os cumprimentos habituais entre vizinhos que pouco se falavam, o barulho das obras da nova estrada que se liga à capital e os vendedores ambulantes a vender vassouras e panelas. Eu já conseguia distinguir aquela sinfonia e formular em minha cabeça todo aquele panorama matinal. Pouco a pouco, meu corpo dengoso cansava-se daquela inércia e enviava sinais nervosos arrastados à todas as minhas articulações. Com gestos suaves, meus braços e pernas esticavam-se ao nada, como se estivessem digladiando com seres invisíveis, que não sangravam ou gritavam aos meus ouvidos. Sentei-me sobre a cama, e como um bêbado, cambaleei em passos tortos em direção à janela. As cortinas, quentes e esvoaçantes, dançavam nos contornos do meu rosto enquanto eu tomava coragem para enfrentar o lume que vinha de fora. Ao arrastar aqueles pedaços de pano, fui torturado pelo clarão do dia já posto, que ofuscou meus olhos por alguns segundos. Recuperada a visão, enxerguei uma nova Vórsea surgir diante os meus olhos, diferente da cidade fantasma que eu havia contemplado semanas atrás, após o meu encontro com o gato preto.