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O autor adverte que o conteúdo dos textos a seguir pode ser de origem real, imaginária ou onírica. Logo, em se tratando de semelhanças com o cotidiano, os mesmos podem distorcê-lo em intensidade e veracidade dos fatos.

domingo, 11 de novembro de 2012

O gato preto – Parte II

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      A aurora recém-chegada já dava outros tons à sobriedade constante da pequena cidade de Vórsea. O horizonte pouco a pouco era rasgado pelos impiedosos raios solares, que invadiam as casas, e na ausência de uma sutileza intrínseca, despertavam todos os habitantes adormecidos. O canto dos pássaros ganhava amplitudes dignas de uma ópera e cruzava os cômodos ocos, abafando até o som compassado dos automóveis e das carroças. Já se ouvia os risos das crianças brincando de pique-esconde, os cumprimentos habituais entre vizinhos que pouco se falavam, o barulho das obras da nova estrada que se liga à capital e os vendedores ambulantes a vender vassouras e panelas. Eu já conseguia distinguir aquela sinfonia e formular em minha cabeça todo aquele panorama matinal. Pouco a pouco, meu corpo dengoso cansava-se daquela inércia e enviava sinais nervosos arrastados à todas as minhas articulações. Com gestos suaves, meus braços e pernas esticavam-se ao nada, como se estivessem digladiando com seres invisíveis, que não sangravam ou gritavam aos meus ouvidos. Sentei-me sobre a cama, e como um bêbado, cambaleei em passos tortos em direção à janela. As cortinas, quentes e esvoaçantes, dançavam nos contornos do meu rosto enquanto eu tomava coragem para enfrentar o lume que vinha de fora. Ao arrastar aqueles pedaços de pano, fui torturado pelo clarão do dia já posto, que ofuscou meus olhos por alguns segundos. Recuperada a visão, enxerguei uma nova Vórsea surgir diante os meus olhos, diferente da cidade fantasma  que eu havia contemplado semanas atrás, após o meu encontro com o gato preto.
      Na sua atitude reservada e preponderante, ele ainda guardava todo aquele ocultismo que presenciei pela primeira vez numa remota noite de outono. Desde então, enxergo no acaso o toque suave das suas patas negras e frias. Vejo os dias tomarem caminhos de acordo com a sua prescrição. A vontade desconhecida e inexplicável do gato preto tem moldado todo o meu destino. E quão afortunado ele tem sido! Toda aquela avidez que se apoderou de mim naquela noite me levou a tomar decisões que me conduziram ao homem afortunado no qual me tornei. O vizinho encrenqueiro, já acostumado a roubar o jornal, entregue todos os dias no tapete da minha porta, subitamente passou a sair com o amanhecer para comprar o seu. Todos os carros passavam pelas poças de chuva enlamaçadas, que desenhando formas um pouco raras, evitavam todo o meu constrangido ser. Os meus inúteis reflexos, que tanto contribuíam para a minha distração, converteram-se nos de um pugilista, que não mais derrubaria café na blusa branca social limpa. Nas partidas de futebol, descrente das minhas habilidades, chutava a bola dos escanteios, com os olhos fechados e usando a perna esquerda, sempre a pior delas, e a trajetória da bola em todos os momentos ganhava curvas inexplicáveis, fazendo ela entrar todas as vezes. Ainda desacreditado, apostei em corridas de cavalo, joguei em todas as cartelas da loteria, visitei cassinos clandestinos, e para a minha surpresa, ganhei tudo que encarei.
      Envolto por milhares de notas, eu banhava-me da minha sorte sem pudor e esnobava todos aqueles que se entristeciam para que a minha soberania pudesse acontecer. Exausto, deitei-me com um enorme sorriso no rosto, sabido da minha inconsequência e desprezo, e rapidamente entrei em um estado profundo de sono. Tive um pesadelo desconhecido, rápido, lento, intenso, raso, louco, são, que não pude definir. Ao acordar subitamente, suado e com o coração a trotar sobre o meu peito, enxerguei nada mais que escuridão à minha frente. Na janela fechada do meu quarto, eu conseguia ver a luz amarela dos postes ocupar as pequenas fissuras que ali existiam. Ao abrí-la, não mais admirei a imponente Vórsea sobre os meus olhos. A cidade melancólica do outono passado voltava a reinar sobre aquele chão de pedra portuguesa.
      Amedrontado, corri para o banheiro, mas no caminho, tropecei sobre o tapete e torci o meu pé esquerdo. Mancando, desloquei-me em direção à pia e apoiando-me sobre ela, quebrei o vidro que a compunha, e como uma navalha, ela cortou parte de minha bochecha direito e provocou um chafariz de sangue sobre o meu braço. Ao buscar um agasalho no armário velho de mogno, puxei com tanta força a porta emperrada que o mesmo ameaçou cair sobre mim, repousando somente em cima da perna intacta. Ao sair de casa, prendi um dos meus dedos no vão da porta e ao gritar de dor não provoquei a ira de ninguém nas cercanias. Nenhuma reclamação sequer. Vi tudo se repetir à minha volta. No auge do meu desespero e afobamento, segui custoso em direção ao beco do gato preto e gritei milhões de injúrias, mesmo que ele não as fosse entender. De repente, eis que seus olhos brilhantes passaram a reluzir naquele breu e ele veio se esgueirando entre as latas de lixo em direção à mim. Já em contato com a luz, confesso ter percebido uma desaprovação no seu semblante, como um pai que se decepciona com o filho, e senti-me intimidado com toda a sua intrepidez. Voltei a chamá-lo de todos os maus nomes que pude encontrar no meu vocabulário e diante a indiferença constante dele, fui me afastando. Já no meio da rua deserta, virei a cabeça para ver se ele ainda continuava ali. Nada vi. Chorei por ter confiado plenamente naquela ventura, por ter me entregado fielmente à vontade daquele animal. Ajoelhei-me, já muito fraco, e de olhos fechados refleti sobre o meu passado. Pensando no que perdi, vi que nada que ganhei recompensaria a dor e a incapacidade daquele instante. Ao abrir os olhos, ainda embaçados, presenciei uma claridade crescer aos poucos ao meu lado. Ao perceber a presença distante e rápida de um caminhão, tentei me mover para a calçada, esforço esse em vão. Meu corpo não respondia mais aos meus chamados, como que condenando tudo aquilo que o espírito se deixou por levar. Já ciente da minha morte, busquei nas proximidades um ajuda qualquer. E numa ironia quase que sutil, o gato preto se apresentou como que numa plateia de cinema. Só consegui enxergar as já conhecidas bolas prateadas que compunham a sua vista surgindo cada vez mais do escuro. E nos segundos finais, quando o caminhão já buzinava sem a possibilidade de frear, dei a última olhada no gato. Os cantos de sua boca se estenderam com uma facilidade inimaginável a um animal. Ele sorria um sorriso de escárnio, falso como a sorte eterna que achei ter presenciado. Falsa como a vida que eu há pouco eu imaginava possível. Vida essa que agora repousa tranquila, como as noites sombrias de outono na pequena cidade de Vórsea.

Fim.

Caio Sereno.

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