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O autor adverte que o conteúdo dos textos a seguir pode ser de origem real, imaginária ou onírica. Logo, em se tratando de semelhanças com o cotidiano, os mesmos podem distorcê-lo em intensidade e veracidade dos fatos.

sábado, 30 de abril de 2011

O piano verde


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      O piano verde agora repousa quieto no canto da sala. Abandonou-se a casa. Agora todo esse contexto fará parte da paisagem de um cartão-postal qualquer. Não mais importam as janelas fechadas, a pintura desgastada, a terra não arada, o piano verde.
      E que triste será despedir-me daquele piano! Que cor majestosa, viva, radiante. Nunca se viu piano mais adaptável à teoria da beleza temporal. Desde o primeiro momento em que pisei meus pés na madeira da sala, praticamente passei eu a fazer parte daquele espaço. Eu comecei a ver-me no cheiro da madeira úmida, nas poltronas empoeiradas, no lustre que não mais funcionava, no canto em que residia o belo piano verde.
      Com o passar dos anos fui reconhecendo a sua forma, o agudo e grave de cada nota, sua larga expansão sonora, a delicadeza de cada corda, a fragilidade do seu material já muito consumido. Mas, por que então levar em conta todos os seus atuais defeitos se a sua música continuava a mesma? A mesma perfeição a qual eu sempre tive conhecimento. Percebi que apesar das janelas fechadas, da pintura desgastada, da terrada não arada, da madeira úmida, das poltronas empoeiradas, do lustre quebrado e inativo, ainda ali, no canto da sala, eu podia retirar harmonia e alegria na forma de som do inexplicável piano verde.
      Eu até hoje não sei como, mas no piano verde, a música surgia por si só. De seu verde vivo nasciam lindos galhos nutridos pela suavidade das notas que nadavam sobre as ondas do som. Aos meus olhos a mágica que ali ocorria não era a dos truques. Ela se perpetuava na fantasia da inocência. Ela se perpetuava na ideia de eternidade. Eternamente ver florir jardins sobre o piano verde, eternamente escutar a mais doce canção pelo piano verde.
Quem inventou a eternidade esqueceu de contar que todas as coisas são eternas, até que se chegue a um fim. E como dói enxergar enfim a verdade que tanto pareceu mentira aos meus olhos. Porém eu hei de compreender. Do que seriam os momentos felizes sem os tristes para compará-los? Do que seria a perfeição sem a tragédia? Do que seriam as lágrimas se não fossem para lavar a alma de quem chora por ter amado?
      Hoje, quando atravesso a casa abandonada, a casa do piano verde, é a sua música que escuto. Ela passará a ser a trilha sonora dos meus últimos dias. Não que eu esteja planejando partir já tão cedo. É que aprendi enquanto estive naquela casa a tocar o piano verde, que eu devia ter saboreado mais intensamente cada acorde por ele destilado. A sua música é que rondará os meus pensamentos, que guiará o meu coração solitário, a minha mente extenuada. O piano por si só não era nada. Não era e nunca foi. Pois então que eu faça a minha música, os meus acordes, as minhas notas, que eu construa a minha melodia! Para que ela seja tocada nos ouvidos de cada um nos dias que seguirem após a minha partida. E que assim sintam saudades minhas, como agora aos prantos, eu sinto do piano verde.

Caio Sereno.

2 comentários:

  1. Seu texto é incrível!! Você escreve muito bem, usa e abusa das palavras...
    Parabéns!!
    Você honra o título de ex-aluno do Cp2!!

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  2. Fantástico! Se eu não o conhecesse, poderi até duvidar que um cara de apenas 18 anos tivesse esta capacidade. Mas, conhecendo-o, sei que é capaz disto e muito mais. tenho um enorme orgulho em ser sua Tia-Avó. Beijos!!

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