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O autor adverte que o conteúdo dos textos a seguir pode ser de origem real, imaginária ou onírica. Logo, em se tratando de semelhanças com o cotidiano, os mesmos podem distorcê-lo em intensidade e veracidade dos fatos.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Vida lá fora


vidalafora
      
       As pessoas que transitam por minha rua e passam por meu portão avistam meu semblante pensativo, meio acabado, desgastado, a admirar os passantes deste majestoso bairro. E me perguntam que faço eu ali a respirar ares tão puros e adocidados, os mesmos que exalam as crianças que estão a sorrir e farrear num canteiro sujo, perto da banca de jornal do Seu Jerônimo, marido da Dona Joana, parteira da vizinhança. Apesar de tudo, do outro lado percebo na esquina um grupo de jovens reunidos, a beber e festejar a dádiva da vida, o prazer de uma vida bohêmia e regada pelas vitórias do maior time do mundo. Logo em frente escuto os gritos de Carmélia. A pobre mulher polonesa enloquecia todos os dias com as peripécias de Herivelto, seu marido, que insistia numa relação a três, e estava sempre a trazer um felino do sexo feminino para as entranhas de sua casa com o intuito de adentrar no campo sagrado que era o quarto do casal. E de súbito surgem em meus calcanhares Carlos e Rosa, amados rebentos. Fruto vivo e encarnado dos tempos que passei junto com a mulher mais linda de todas. Aquela que me fez eternos uns mínimos segundos, que cravou em meu peito a saudade de uma vida toda. Foi o “para sempre felizes” na “forma de paraíso”. E o paraíso na forma de três anos.
       É isso o que faço aqui. Percebo nas coisas, nos lugares em que passaste, meu bem, a tua beleza, o teu odor, a tua graciosidade, tudo o que havia de bom em ti. E se tiveste algum defeito, que esqueças, pois hoje só quererei sorrir ao recordar dos tempos de ouro que passei ao seu lado. A sua paciência e simplicidade entretendo as crianças com as brincadeiras mais diversas, mais alegres, que lhes fazia cair em risos ao chão quando afogava-os de beijos e várias cócegas. A sua ousadia e confiança ao passar nos bares para comprar a minha tão querida cerveja, o meu amor terceiro, ou quarto, ou quinto, não sei. Ver-te rebolar e seduzir os marmajos que ali habitavam para depois destruí-los com somente um beijo quente com seus lábios carnudos nos meus fazia-me ver que eras a mulher perfeita para viver uma vida inteira. E pensar que a balbúrdia do vizinho resultou numa troca de risos, olhares e prazer numa noite fria de um inverno passado. Lembras? Fechei todas as cortinas, a porta do futuro quarto das crianças, acendi umas velas, o toca-discos enferrujado que tocava somente aquele disco, somente aquela faixa, mas que já bastava, pois era aquela música que te fazia delirar nas terras das melodias. Enxergo em seus modos de agir, de se comportar, de se vestir, de se afeitar, enxergo em tudo que vejo meus filhos a prova viva dos momentos maravilhosos de verdadeiro amor que passei nesta breve passagem que tiveste nos campos terrenos.
       Não quero dormir, não quero que a cidade durma. Quero que ela fique sempre ligada, sempre funcionando, com pessoas correndo ou somente passando, que elas vivam a todo tempo o momento de uma tarde ensolarada, que se movimentem ao som da madrugada solitária. Façam isso por mim... A dor que eu sinto nos gélidos lençois de casal, nesta cama tão grande, tão mal aproveitada pela frieza desse meu coração partido. Ainda que eu sonhe contigo todas as noites dir-te-ias que prefereria não ter mais estas experiências oníricas. Presenciar o teu corpo sobre o meu por um tempo indeterminado, acordar, sufocado, e ver que não estás ao meu lado a despertar, calmamente, espreguiçando-se, sorrindo e me beijando, é tortura das rudes.
       É a vida lá fora que alivia a saudade que abate meu peito. É a vida lá fora que me faz entender que fugir ou tentar chegar mais perto de ti serão formas dolorosas, algo em vão. É a vida lá fora que enche meus olhos de lágrimas. É a vida lá fora que enche o meu mundo de alegria.
       É a vida lá fora que preenche o vazio que eu sinto dentro de mim...

Caio Sereno

Um comentário:

  1. Pode-se dizer que buscamos, para escrever nossos recentes textos, talvez a mesma inspiração. Ainda que não por completo, mas em alguns trechos. A vida lá fora sempre nos diz muita coisa e desperta em nós novas ideias!

    Beijos,
    Thaís.

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