Eu não nasci

      Eu não nasci para viver. As minhas vontades não são suprimidas com os meus desejos e realizações. Mas não pense que minha vida se resume a nada, não. Eu tenho de ser alguém, para assim fazer do outro uma pessoa melhor que eu, e assim mudar o mundo, já que eu por mim mesmo, levadas as devidas proporções, sou um nada. Poucos sentirão a minha falta, e aqueles que sentirem não mais ter-me-ão em seu leito a dizer o que talvez seja certo, o que talvez seja errado, ainda que eu os diga que no final tudo ocorrerá bem.

      Eu não nasci para ser feliz. A minha felicidade por si só não vale nada. É mera abstração idealizada em um egoísmo que traz ao outro a melancolia através da comparação. E que tristeza emana no fundo da alma ao saber da tragédia alheia. Necessito afundar-me em completo estado de solidão e prostação para que me vejam e pensem que as suas realidades são mais belas que a que me encontro. Então, se acaso me vires assim, saibas que o meu objetivo é e sempre será maior que eu mesmo, e por isso deve permanecer vivo a qualquer custo.
      Eu não nasci para amar. Este sentimento está sujeito aos acasos do destino, não tendo tempo de duração certeiro. Esta incerteza, que apesar de ser do conhecimento de todos esconde-se por trás da ideia de eternidade, é crueldade das mais rudes. Não posso permitir que alguém careça dos meus sorrisos, dos meus carinhos, dos meus dizeres para atingir a completa harmonia interior. Imagines que se eu partisse, não importando os meios, eu retiraria um pedaço dela e não teria a capacidade de não causar tais danos. São consequências inevitáveis, que fogem a meu ideário.
        ... depois de chegar a todas essas conclusões creio que
      Eu não devia ter nascido. As reflexões que fiz outrora, que tanto sacrifiraram o meu corpo e minha alma, nunca teriam existido, eu nunca teria existido. E quem sabe só assim eu estaria em paz.

Caio Sereno.