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O autor adverte que o conteúdo dos textos a seguir pode ser de origem real, imaginária ou onírica. Logo, em se tratando de semelhanças com o cotidiano, os mesmos podem distorcê-lo em intensidade e veracidade dos fatos.

sábado, 31 de dezembro de 2011

O Murilinho

                  (texto extraído do livro O Melhor das Comédias da Vida Privada)
                                                                                     Luis Fernando Veríssimo


      De tanto ouvir falar do Murilinho – que era um gênio, que era um chato, que era um crânio, que era um bobo –, a Ângela não se conteve. No dia em que foi apresentada a ele, exclamou:
      — Então você é o Murilinho?
      E ele, abrindo os braços:
      — Alguém tem que ser.
      Ângela decidiu que não era alguém que ela gostaria de conhecer.
      Na primeira vez em que convidou o Murilinho para ir à sua casa (contra os conselhos de muitos, que diziam que ela ia se arrepender), a Ângela se arrependeu. Falava-se em idades e alguém perguntou ao Dr. Feitosa, um velho amigo da família que raramente os visitava e estava lá com a sua senhora:
      — Dr. Feitosa, quando é que o senhor faz 69?
      E o Murilinho, rapidamente, respondera por ele:
      — Aos sábados!
      E caíra na gargalhada, enquanto todos em volta congelavam. Depois que os convidados foram embora, o pai de Ângela pediu:
      — Por favor, minha filha. Não traga esse moço aqui.
      — Pode deixar, papai.
      Ângela tinha decidido não só nunca mais convidar o Murilinho para a sua casa, como jamais vê-lo de novo.

      Quando soube que a Ângela e o Murilinho estavam namorando, a turma se dividiu em dois campos. O dos que achavam que o Murilinho era brilhante, divertidíssimo, uma figura, e por isso mesmo a Ângela não o aguentaria por muito tempo, e o dos que achavam que o Murilinho era instável, complicadíssimo, um louco, e por isso a Ângela não o aguentaria por muito tempo. Mas a própria Ângela garantiu que as duas facções estavam erradas. O Murilinho mudara muito. Desde que começara o namoro, era outro homem. Normal. Pacato. Até o pai da Ângela concordara em recebê-lo outra vez em casa.
      — Vocês vão ver. O Murilinho é outro.
     Naquele exato momento, apareceu o Murilinho — vestido de mulher. Vestindo um tailleurzinho jeitoso, salto alto e um chapéu de aba larga. Quando recuperou a respiração, a Ângela gritou:
      — Murilinho, o que é isso?
      — Eu sei. É o chapéu. Não se usa mais, não é?
      A Ângela saiu correndo, aos prantos. Pronto. Acabara. O Murilinho, nunca mais.

      Foi o próprio Murilinho que insistiu numa festa de noivado. Não adiantou a Ângela dizer que ninguém mais casava, quando mais noivava. O Murilinho queria tudo bem tradicional. Uma festa na casa da Ângela, com toda a família reunida, e os amigos de família, e toda a turma. Que foi à festa só pra ver o que o Murilinho aprontaria desta vez. Mas o Murilinho estava sério. Com uma gravata sóbria, não a que todos conheciam, com a figura de mulher nua com penugem de verdade no púbis, que ele costumava usar em ocasiões formais. Passou o tempo todo conversando gravemente com o pai da Ângela e com os mais velhos, inclusive o Dr. Feitosa, só interrompendo a conversa para assoprar beijos carinhos na direção da noiva. Quando pediu para fazer um discurso, Murilinho declarou que, apesar do que alguns poderia pensar dele, era um homem à antiga, um homem convencional. Gostava dos velhos costumes e dos velhos valores, hoje tão esquecidos. Era tão antigo, disse, olhando para o pai de Ângela, que iria confessar uma coisa. Ele e Ângela ainda não tinham feito sexo. Dava pra acreditar? O pai de Ângela sacudiu a cabeça, querendo dizer “estes jovens de hoje”, mas continuou a sorrir. E então o Murilinho procurou Ângela com o olhar inquisidor e disse:
      — A não ser que aquele negócio que a gente faz com o desentupidor de pia e o gato seja sexo, hein, Gê?
      Grande confusão. O pai de Ângela tentou avançar no Murilinho e foi contido, mas a Ângela conseguiu acertá-lo com uma cadeira. A senhora do Dr. Feitosa teve que ser carregada para casa. O noivado foi desfeito e o casamento cancelado. E o Murilinho ameaçado de tudo se aparecesse outra vez na frente de Ângela.

      Ao casamento, a família não foi. Foi a turma, antecipando que alguma o Murilinho faria. Sair dançando com o padre, alguma coisa assim. Mas, fora fingir que queria arrancar as roupas de Ângela ali mesmo no altar, depois da cerimônia, o Murilinho se comportou bem. Correu para pegar o buquê da noiva, mas tudo bem. E você acredita que vivem feliz até hoje? Bom. “Felizes” talvez não seja a palavra exata. “Feliz” nunca é a palavra exata num casamento. Mas continuam juntos. Como? A Ângela não ajuda. Quando perguntam para ela como é ser a mulher do Murilinho, ela dá de ombros e responde:
      — Alguém tem que ser.

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